Quando menino acompanhava a política da minha cidade (Crato), colecionando santinhos, adesivos e brindes das campanhas políticas, acompanhando comícios, aplaudindo e vaiando candidatos. Querendo entender cada discurso, cada motivo que levaria as vaias, os aplausos, aos futuros votos. Entre coronéis, autoridades, novos heróis, velhos guerreiros, povo, falta d’água, corrupção, e sorrisos vi surgir dos laboratórios da sabedoria, em meio às vertentes oligárquicas da época, uma estrela sólida de passos em equilíbrio com a coletividade cratense. O médico Marcos Cunha (neurologista), então do Partido dos Trabalhadores (13) por volta de 1988 se candidata para o cargo maior do município.As campanhas eleitorais foram alfinetadas. Em cada bairro a disputa fazia enfurecer e apaixonar os eleitores. Históricas carreatas tomaram as ruas. De um lado o dinheiro fazendo o espetáculo na campanha, do outro a criatividade do palanque em cima do velho caminhão, e falta de grana que faziam dos comícios um show de inventabilidade a parte. A campanha seguia acirrada com a mão do Governo Tasso a financiar a empreitada do concorrente maior de Marcos Cunha, e o povo comprando os brindes dos comitês do PT para levar a perspectiva de ruptura com o passado adiante.A nova força política da cidade representava muito mais do que um novo nome. Carregava consigo toda a simbologia da recém-democracia, de mudança de fato. Uma ruptura com o atraso dos coronéis, do anacronismo das oligarquias, não no aspecto do homem das mudanças como se viu nas eleições no ano anterior para o Governo do Estado. Mas, de uma revolução que o Crato nunca imaginava que pudesse possuir, e se viu muito próximo de conquistar este ideal. Um governo independente, que seria altamente perseguido pelo “galeguim de olho azul”, mas pertenceria incrustado na alma do guerreiro povo do Crato. Marcos Cunha chegou a ficar em segundo lugar nas pesquisas, a míseros três pontos percentuais do primeiro colocado (praticamente empatado). O desespero tomava de conta do poder tradicional da cidade, o novo governo via o médico petista como uma afronta, ousadia de um doutor no sul cearense. Uma eventual possibilidade de ameaça ao seu recém-comando que se dizia ser das mudanças (deste episódio já se poderia tirar a conclusão que as coisas iriam mudar apenas para a patota dos gestores da época). Foi uma histórica e vitoriosa campanha da esquerda cratense, mesmo tendo perdido as eleições. Os empecilhos de todas as forças que via naquela corrente vermelha a impossibilidade de permanecer nas nascentes do ouro fez pela primeira vez um embate de equilíbrio de guerra entre a esquerda e a direita no interior do Ceará (mesmo as armas da direita sendo de destruição de massa).Da memória da infância lembro muito bem do dia do comício final na Praça da Sé (centro do Crato) do candidato do Governador Tasso. Foi armado um imenso palco jamais visto naquela cidade. Fogos intermináveis que fazia a noite de dia. Governador presente, babões entusiasmados lambendo seu frio suor. Praça lotada. Era um pequeno na multidão. No instante em que o Sr. Governador foi discursar ao povo veio o primeiro golpe contra a candidatura da esperança, Marcos Cunha. Fogos ainda a celebrar o “Governo das Mudanças”, ainda nas suas primeiras palavras, a energia de toda Praça da Sé vai embora. Tudo escuro, microfone mudo. O clima ficou tenso com a falta de energia elétrica. Passou alguns minutos, até que a força na luz voltou. Dando seqüência ao seu discurso, o Sr. Governador Jereissati supôs que aquele episódio da luz foi para calar o seu discurso, e tinha sido molecagem da turma do PT. A falta de energia foi atribuída aos camaradas de Marcus Cunha e Cia. Na época o PT era visto como grupo de comunistas confuseiros e arruaceiros na cidade. No mesmo momento, entendi qual era a pretensão obscura do então governante que tinha derrotado os homens de Juazeiro. Fiquei frustrado por saber naquele momento que não iria ver um sonho coletivo se concretizar no Crato. Desde a campanha das “Diretas Já!” até as eleições municipais nunca tinha visto um clamor tão marcante e sensível a comunidade cratense. No entanto, nas urnas ainda de cédulas de papel, o povo preferiu Zé Adega a Marcos Cunha.No Seminário, bairro mais populoso do Crato, morava minha inesquecível avó. Na noite que antecedeu as eleições fui visita-lá e percebi um fenômeno enigmático e muito estranho nas calçadas. Coisas misteriosas e estranhas aconteceram no Bairro do Seminário naquela véspera de dia das eleições. Parecia festa ou noite de vigília para os santos da igreja. De madrugada, as pessoas ficavam nas calçadas esperando o preço do voto. A caminhoneta de cor clara logo chegava para distribuir os quitutes com gosto de moeda. Trocados a todos das calçadas para acabar de vez com a ousadia do médico. Dava até vontade de pedir também, mas minha avó e os pobres santos do Seminário me continham ao comércio do voto.O apagão da Praça da Sé, junto ao misterioso fenômeno das pessoas sentadas em suas cadeiras nas calçadas mudaram definitivamente a história daquela eleição, e da cidade. Tudo se encaminhava para uma vitória histórica e primeira derrota do Governador. Triste para uma vitória que todos percebiam, todos queriam, mas que na escuridão, na velocidade das rodas e distribuição de dinheiro mudaram para sempre a rota daquele município, que até hoje sofre por conta do destino ceifado pelo poder da criatura que se dizia acabar com o coronelismo no Estado.O final destas lembranças os cearenses já sabem: décadas do coronelismo industrial no poder, Crato a ficar atrasado em relação a outras cidades do Estado, a perder sua identidade, sua postura de princesa, e sua força. O ex-candidato Marcos Cunha nunca mais quis ousar como político, que pena! Ache bom ou ache ruim, recordações de uma infância questionadora, é isto!.
Por Tiago Viana
FONTE: www.rastreadoresdeimpurezas.org
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